A bagunça generalizada havia começado. Duvido, caro(a)
leitor(a), que você já viu algo parecido neste mundão, mas acredite: as
manifestantes eram palavras. Isso mesmo! Revoltadas, se acotovelavam na
multidão, com seus cartazes e faixas. Saíam dos livros empoeirados, pulando das
altas estantes da Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo. Eram
verbos, substantivos, pronomes, artigos, adjetivos, palavras cruzadas... O
destino final da passeata seria o Museu da Língua Portuguesa. Queriam maior
visibilidade nas mídias, por isso iriam tentar bloquear as avenidas principais
do trajeto.
Quem começou a organizar o zum zum zum foi o Partido das
Palavras em Desuso na Língua Portuguesa, o PPD. O presidente, Senhor Supimpa, disse que todas não aguentavam
mais tanta rejeição e descaso. Se juntavam a ele muitas outras palavras e
expressões esquecidas no vocabulário atual: chumbrega, donzela, candeia, bolinar, batuta, quiproquó, safanão,
lero-lero, balaco-baco, patavinas, datilógrafo, alpendre, decalque, vitupério,
à beça, bulhufas, chocante, patota, botica e outros. Reivindicavam o fim
das novas gírias e neologismos, alegando que eram a causa de serem deixadas
para trás. Sirigaita e lambisgoia
seguravam um cartaz onde estava escrito: “Não iremos para o cemitério!” Também
reclamavam da invasão de todo um palavreado que veio com a era digital e com as
redes sociais como: Tablet, notebook,
print, bugado, trolar, youtuber, gamer,
crush, selfie, blog, vlog, tuitar, mouse,
scanear, aplicativo, viralizou, meme, e-mail,
vídeo conferência. Mais à frente da multidão, riso, risada e gargalhada erguiam
uma faixa escrita “Abaixo ao kkkk, rsrsrs e ao hahahaha!”. Não aceitavam virar
uma mera repetição de letras. Exigiam a presença dos Direitos humanos. Quer
dizer, das palavras.
Reivindicavam a volta das palavras esquecidas pelos mal-educados:
obrigado, por favor e com licença. Outras três palavras poderosas (talvez, as
mais importantes de todas), também começavam a ficar de escanteio pelos humanos
de corações frios: o eu, o te e o amo.
Também exigiam explicações para a enxurrada de palavras em
inglês que invadiram nosso país. Pediam que regularizassem essa situação e banissem do vocabulário
palavras como: hot dog, milk-shake, food
truck, brunch, banner, outdoor, folder, pet shop, make up, fashion, sale
shopping, cowboy, cartoon, top model, pop star, diet, light, stress, drink, jet
lag, show room e outras. A palavra xampu, com uma bandeira do Brasil sobre
os ombros, reclamava que poucos a usavam. Em sua camiseta, uma frase dizia:" Chega de estrangeirismo"!
Perto dali, o PPT- Partido dos Pronomes de Tratamento
reclamavam da morte prematura do Vossa Senhoria, palavras tão respeitosas.
“Você” reivindicava alguma explicação para tanta transformação. Do vossa mercê passou para o vós mecê, que passou para você que foi para cê ou vc. Se sentia
pequeno demais e tinha medo de desaparecer. Beleza, estava deprimida num canto, por ter virado blz. Se
sentia feia sem suas vogais companheiras. Perdoo não perdoava a retirada do seu
chapéu. Voo e enjoo também não gostaram. Se sentiam calvos. Algumas palavras francesas se exaltaram contra o
aportuguesamento de suas palavras originais. Abat-jour não queria ser o abajur. Soutien não aceitava ser sutiã. E coullant não se conformava em ser colã. “Quem autorizou esse registro no dicionário?” - diziam.
Muitos também se queixavam das novas regras de ortografia.
Plateia, ideia e jiboia diziam que não foram consultadas antes da mudança e não
se acostumaram sem o acento. Propunham um referendo. A palavra aguentar, por
exemplo, não estava aguentando a retirada do trema em cima do u. Isolado da
multidão, a palavra antissocial exigia a volta do hífen que separava o anti do
social.
Como bloquearam várias avenidas por onde passavam, gerou
revolta nos motoristas. O trânsito se tornou mais caótico do que já é de
costume. Logo, a polícia foi acionada. O batalhão de choque disparava tiros de
borracha e bombas de efeito moral. Começou o maior caça palavras de todos os
tempos. As palavras se espalharam, como em briga de baile. Houve tumulto e
correria. Algumas se machucaram e precisaram ser socorridas, principalmente as
onomatopeias soc, tum e pof, que
sofreram ferimentos leves. Algumas palavras,
indignadas, falavam palavrões para a polícia. Vitupério, do PPD, era quem mais
xingava.
O protesto terminou. Voltaram para os livros, sob os olhos
arregalados da bibliotecária, que nunca tinha visto aquilo nos dez anos que
trabalhava na biblioteca. No outro dia estavam estampadas na primeira página do
jornal. A Academia Brasileira de Letras se pronunciou, prometendo ter mais
critério na retirada de palavras antigas e registro de palavras novas. Dariam
palestras em escolas e faculdades, incentivando os brasileiros a valorizar mais
as palavras em português ao invés das estrangeiras. Xampu ficou realizado. Mas
as palavras não se contentaram somente com isto. Prometiam procurar esse tal de
Aurélio. E o Michaelis também. Quem eram? Onde moravam? Seria possível uma
aproximação para discutirem alguns assuntos?
O próximo protesto já
estava marcado. Seria contra o baixo índice de leitores nas bibliotecas, que, a
cada dia, ficavam mais vazias e empoeiradas. Mas mal sabiam as palavras que a
maior mudança estava por vir: a incrível invenção do livro digital. O
burburinho tinha começado há um bom tempo. Ouviram dizer que, talvez, os livros
impressos seriam extintos, com o passar dos anos. Precisariam se modernizar, se
quisessem a sobrevivência da espécie. A tarefa, sabiam, seria árdua. Ficariam,
talvez, sem palavras frente a maior revolução de suas vidas.