Morávamos num apartamento. Sétimo andar. Não tínhamos
filhos. O relacionamento que tínhamos com os vizinhos era aquela coisa de
oi/tudo bem/tchau/ está quente hoje né, típico papinho chato de elevador, sabe?
Ficamos sabendo que o marido da vizinha estava com um câncer terrível. Não
tinha mais o que fazer. Ela, um certo dia, disse que o médico deu três meses de
vida para ele. Disse, também, que sua filha, de uns dez anos na época, muito
apegada ao pai, estava fazendo terapia numa psicóloga para entender a morte e
aprender a lidar com isso.
Fiquei com aqueles três meses na cabeça e avisei meu marido
da gravidade da situação. O vizinho, cada vez mais, emagrecia e estava,
visivelmente, enfraquecido. Não queria ser aquela vizinha fria e insensível,
que nem se deu conta que o vizinho bateu as botas. Então, depois de algumas
semanas, comecei a reparar a movimentação na vizinha, se chegavam parentes ou
se ouvíamos algum som de choro.
Certo dia, exatamente três meses depois, estava pronta para
dormir, mas não conseguia pois estava com uma dor de cabeça terrível. Era, mais
ou menos, 23:30 da noite. De repente, começo a ouvir berros muito altos e
histéricos da filha do vizinho. Não precisava nem encostar a cabeça na parede para
ouvir melhor. Eram gritos tão altos que ecoavam pelo prédio inteiro. Ela dizia,
repetidas vezes: “Nãããããããããããão! Você não morreu! Acorda! Você só está
dormindo! Nããão! Respira! - totalmente desesperada. Era de cortar o coração
Eu e meu marido já nos entreolhamos, de olhos arregalados.
Ela continuava urrando, parecia que estava dentro da nossa casa. Então eu
disse: “Putz, droga, ele morreu! ” Ficamos cogitando o que devíamos fazer.
Afinal, isso era algo novo para gente. Nenhum vizinho nosso tinha morrido até
então. Foi aí que falei: “Vai lá, por favor?! Estou com uma baita dor de
cabeça. Precisamos fazer alguma coisa. Não vamos falar nada? Ofereça ajuda, ou
para ficar com a filha enquanto ela resolve as coisas, para levar o corpo até o
térreo ou para telefonar para os parentes avisando ”. Ele ficou me olhando pensativo,
e perguntou: “ Você acha que ele morreu mesmo? ”. “Mas é obvio! Olha as coisas
que ela está falando”! - eu disse.
Ele, bem constrangido, foi. Cinco passos e leves batidinhas
na porta, que após alguns instantes se abriu somente pouco. A viúva pôs somente
a cabeça para fora (devia estar de pijamas), e perguntou: “Oi”? Quando ele ia
abrir a boca para falar, aparece, por cima da cabeça da vizinha, o suposto
morto, vivíssimo, e disse a mesma coisa: “Oi? Pois não”? Aí meu marido travou!
O que dizer? “Ah, você não morreu? Desculpa aí! Boa noite”. Ele ficou olhando para
aquelas duas cabeças olhando para ele por uns dez segundos, os mais
constrangedores de sua vida. Não saía nada! O tempo parecia que tinha parado, o
coração também. Ninguém piscava. Ele cogitou no que poderia dizer e pensou em
algumas possibilidades mais simpáticas como: 1) fingir que estava chegando em
casa bêbado e só errou de porta. 2) dizer que eu estava fazendo um bolo às
23:30 h e queria uma xícara de açúcar emprestada. Desistiu. Começou a gaguejar e
balbuciar palavras: “Éhh...(dez segundos de silêncio), então...(mais cinco
segundos), tá acontecendo alguma coisa que eu possa ajudar? ” Eis que a vizinha diz, apontando para o
marido: “Não foi ele que morreu não! Foi o hãmster da minha filha. Desculpe o
escândalo. Acho que ela está parando de chorar ”. Meu marido, já roxo: “Ah tá.
Ok, desculpa ter incomodado. Qualquer coisa estamos aí. Boa noite ”.
Meu marido, que nunca encontrava o vizinho antes desse
episódio, passou a encontra-lo repetidas vezes. Muitas delas no elevador, que
parecia não chegar nunca ao térreo. Lei de Murphy? Um
dia, o morto vivo chegou até a falar pro porteiro, enquanto meu marido fechava
o portão: “Ele achou que eu tinha morrido. ”- dando uma risadinha irônica.
Depois de uns seis meses ele, de fato, morreu. Ficamos
sabendo pelo porteiro. Acho que estava internado. Não ouvimos nem um pio no
apartamento vizinho. Fomos ao velório e a viúva nos olhou com aquela cara de
“agora sim ”! Finalmente demos os pêsames adequadamente.
Fiquei pensando se a psicóloga não mandou a vizinha matar o
hãmster de propósito. Didaticamente, com o nobre propósito de explicar para
menina um pouco mais sobre a morte.
Pobre hãmster inocente! Pobre viúva... pobre filha... pobre vizinho
solícito e precipitado. Mais a vida se encarrega em encaixar humor até nas
piores situações. Pelo menos, no final das contas, ficamos com uma ótima
história pra contar. Todos amam. E uma excelente gafe ( se não a melhor) para o
nosso curriculum.