Existe uma música em inglês chamada “A casa que me
construiu.” A letra diz sobre uma casa onde a cantora viveu por muitos anos, o
carinho que ela tinha por aquele lugar e por tantos momentos bons que ela
passou enquanto cresceu e morou lá.
Eu vivi, desde que nasci, até o dia do meu casamento na
mesma casa. A da Rua Antônio Garcia. E posso dizer, como a cantora, que passei por
momentos incríveis lá e tenho um carinho monstruoso por ela.
O fato é que a
casa foi vendida. Não é mais nossa. Desde então, já foi uma república, uma
empresa de engenharia florestal e agora, um restaurante vegetariano. Dia desses
eu estava andando por ali e vi que o portão estava aberto. Entrei, comecei a
olhar e tirar foto pra minha família ver como estava agora, as modificações que
foram feitas. Dei de cara com uma mulher com um bebê de colo. Ela e o marido
são os donos atuais da casa. Metade pra frente é restaurante e metade pra
trás são os quartos.
Disse que morei ali a vida inteira. Ela fez uma cara de “Ah
tá, legal hein?!”
Mas eu queria ter dito também que foi ali que tive o amor e o
afeto de meus pais e irmãos por quase vinte anos. Das longas conversas com
minha irmã antes de dormir no nosso quarto. Dos vários cachorros e gatinhos, periquito,
passarinho e papagaio que passaram por lá. Que eu e meus irmãos brigávamos e
tirávamos a sorte no palito pra ver quem dormiria na cama de casal com minha
mãe, nos dias que meu pai dava plantão. Só no quarto dela tinha ar condicionado
e amávamos a luzinha do videocassete. Queria contar pra ela de quando minha mãe
fez a cozinha planejada e ficou do jeitinho que ela queria.
Quis contar, também, que eu fazia a maior lambança no
banheiro do meio, quando enchia a banheira e derramava boa parte da água e
espuma no chão. E que a parte dos quartos do fundo da casa foi construída
depois. Lembro dos meses da reforma em que eu ficava pentelhando os pedreiros,
principalmente o Severino.
Quis contar pra ela que ali recebi muitos familiares e
amigos, brinquei até não poder mais. Subi no telhado com minha melhor amiga. Curti
festinhas de aniversário na sala ou na garagem, dançando Xuxa ou lambada (Se
você lembra da música “Chorando se foi”, está ficando velho).
Queria dizer que ali, onde agora está o buffet de alimentos
para os clientes se servirem foi o mesmo local onde eu desfilava em frente ao
sofá, com uns 8 anos de idade, ao som de Marina Lima, ou tentava dançar, toda
atrapalhada, a música tema do filme Dirty
Dancing. Que era ali que meu pai ouvia ópera no último volume aos domingos
de manhã, lendo jornal ou Veja. Que foi ali naquela sala que eu ouvi o vizinho,
um senhorzinho frágil bem de idade, despencar do telhado violentamente. Mas ele
sobreviveu e assim como o leite, teve longa vida, pois até pouco tempo atrás, o
vi fazendo caminhadas pela Av. Getúlio Vargas.
Nem sei se ela se importaria se eu dissesse que foi ali na
frente, na calçada, que eu dei meu primeiro beijo, morrendo de medo dos meus
pais chegarem. Também fiquei com vontade de contar que eu era mega medrosa e odiava
ficar sozinha na casa. Deve ter sido trauma do episódio do ladrão que estava lá
dentro e deu de cara com minha mãe chegando do mercado. Nunca esquecerei o
grito que ela deu.
Quis falar das vezes que eu ajudei a enfeitar a casa pro
natal. Da ansiedade que eu ficava esperando meu namorado e atual marido me
buscar pra gente sair. Das broncas que levei, dos amigos que chamei. Do som que
vinha do rádio ligado (Jovem Auri Verde) que a Conceição, nossa funcionária
durante muitos anos, ouvia o dia inteiro. Do cheiro de comida gostosa que ela
ou minha mãe preparava.
E no quintal? Um dia acordamos e constatamos que nossa
cadela Rebeca tinha dado filhotes ali, sem que nem desconfiássemos que ela estava
prenha do Roger, o coitado do cão que havia sido vítima de uma apertada cruel
nos testículos (se quiserem saber mais informações desse triste episódio na
vida do Roger ler a crônica “Meu querido cão Fred”). No mesmo quintal havia
duas árvores: um abacateiro e outra árvore alta que por uns 15 anos nunca deu
fruta nenhuma. De repente, assim, do nada, ela resolveu dar uma fruta
esquisita, diferente, cor de rosa. Descobrimos que era lichia, numa época que
não era vendida ainda nos supermercados da minha cidade. Muitos nem conheciam.
Enchíamos sacos gigantes de lixo de tanta lichia que tínhamos.
Mas a casa começou a ficar grande demais depois que meus
irmãos foram embora fazer faculdade. Ficaram apenas eu, minha mãe e meu avô,
que pintava seus lindos quadros no quintal.
Como acontece com toda casa, com os anos, precisávamos fazer
vários consertos, pintar aqui, arrumar ali. Muita manutenção e um baita trabalhão pra limpar. Mas não são só as
casas, querido leitor. Nós também precisamos de consertos. Estamos sempre em
reforma. Pelo menos, deveríamos estar.
O que eu sei é que aquela moça não entenderia ali, naquele
momento, a importância que essa casa teve pra mim e pra minha família. E que
essas lembranças ninguém pode tirar de mim ( a não ser um AVC ou Alzheimer,
ladrões de lembranças). Como é estranho, de um dia pro outro ver aquele local, que
pra você foi tão importante e habita boa parte de suas lembranças de infância e
adolescência, ser de pessoas estranhas! Mas espero que elas sejam tão felizes
quanto eu fui lá. Pois sei que as
paredes, o chão, os móveis não são mágicos. O que fez aquele local ser tão
importante pra mim são as pessoas que viviam dentro dela.
A casa da Antônio Garcia ainda está lá. Os muros estão no
mesmo lugar, a mesma disposição dos cômodos, o pinheiro na garagem. Mas não sei
se tem ainda lichia ou abacate. Sempre dou uma espiada quando passo em frente e
mostro, com orgulho, para meus filhos a casa onde vivi boa parte da minha vida.
O posto de gasolina ainda existe, na avenida ao lado. A padaria também. Na
calçada, o chorão. E as lembranças aqui, no coração.